Lideranças nos Movimentos de Massa em Tempos de Redes Sociais

As manifestações que ocorrem em todo o Brasil são a expressão da frustração que boa parte da população sentiu por causa de um processo eleitoral, desde o início, viciado e sem transparência. Havia, há anos, a solicitação de que, pelo menos, os votos pudessem ser auditados, transformando o pleito em algo um pouco mais confiável. As autoridades, porém, preferiram fechar-se na declaração de inexpugnibilidade das urnas e, além de ignorar o pedido, fizeram de tudo para calar a boca daqueles que reclamassem.

Como muita gente desconfiava, venceu as eleições o candidato que mal podia sair às ruas, com indícios de manipulação de urnas e uma contagem de votos ainda mais suspeita. Esperar que o povo, simplesmente, aceitasse calado tal situação é apostar demais numa tradição passiva brasileira que pertence há um tempo que parece ter ficado para trás.

Essa multidão que se dirigiu, por todo o país, para a frente dos quartéis, pedindo que algo fosse feito diante das imensas suspeitas sobre o processo eleitoral, possui todas as características de um movimento de massa – e isso, em princípio, não significa algo negativo. As massas, são, por natureza, simples, impulsivas, reativas e contagiadas. Além disso, diria-se que ela necessariamente precisa de um líder.

No entanto, esse aspecto específico dos movimentos de massas é algo que mais me questiono neste momento. Isso porque todos os estudos sobre a psicologia das multidões foram feitos antes do advento da internet, e em todos eles a figura do líder é apresentada como essencial. Não existe movimentos de massa sem líder, de quem dependem quase totalmente e sem o qual tendem a desaparecer.

Não é por acaso que aqueles que querem destruir o atual movimento brasileiro estão tentando descobrir quem seriam os líderes por detrás dele, para isolá-los, esperando, com isso, refrear o ímpeto da multidão. Eles não conseguem imaginar que possa haver algo dessa magnitude sem que haja uma liderança conduzindo tudo.

A questão é que as redes sociais parecem estar trazendo um elemento novo a esse estudo da psicologia das massas. O que antes era imprescindível, a figura do líder, com Freud, inclusive, fazendo uma relação dela com o pai primordial mítico, agora parece estar sendo substituída por algo mais fluido e sem tanta necessidade de identificação.

Não que a figura do líder não seja ainda necessária, mas parece que hoje ela é muito mais capaz de ser mantida, mesmo que personalizada, não necessariamente corporificada. A imagem, a voz e até os comandos do líder podem ser mantidos ausentes enquanto são substituídos por várias vozes que serviriam como replicadores fiéis do seu pensamento.

Se for isso, não significa que a psicologia alterou-se, mas a possibilidade da multiplicidade de vozes acrescentou um elemento novo, que permite com que o líder não precise ser tão presente e tão ativo, enquanto suas supostas ideias são replicadas aos milhões e das mais diversas formas.

Isso não significa que a figura do líder não seja importante. Eu ainda não acredito que um movimento de massa consiga sobreviver apenas da espontaneidade de seus membros. É preciso uma figura agregadora, na qual todos confiem e estejam dispostos a sacrificar-se por ela. Essa figura nem precisa ser uma pessoa, mas pode ser mesmo uma instituição.

A questão que fica é: se esse líder escondido ou essa instituição, em algum momento, deixarem claro que não irão atender as demandas da massa, o que essa fará? Será que ela terá coesão suficiente para seguir ativa mesmo sem ter uma referência para quem possa suplicar? Será que essa massa sem líder é capaz de manter-se firme apoiando-se apenas em uma ideia? Será que as redes sociais e a multiplicidade de vozes que ela permite são capazes de sustentar movimentos de massa duradouros? Ou será que a massa exigirá sempre o surgimento de algum líder substituto – que é o que ela, por natureza, costuma fazer?

Sinceramente, essa é uma questão que eu ainda não tenho as devidas respostas. O fenômeno é novo e só o tempo dirá como funciona a psiquê coletiva nessas situações.


Comentários

Uma resposta para “Lideranças nos Movimentos de Massa em Tempos de Redes Sociais”

  1. Avatar de Liber
    Liber

    Ótimo artigo, faz a gente pensar em alguns pontos, se me permite:

    “… numa tradição passiva brasileira …”, sim… parece que os brios foram acordados, talvez mais do que reação por defesa de valores, o brasileiro não gosta de ser passado para trás. É onde a dita “cultura do malandro” ajuda mais que atrapalha, ao menos nesse aspecto, penso eu.

    Já mais para o final do texto, com relação à ausência de líderes, é um ponto que evidentemente pode ter várias formas de analisar. Uma delas é que sim, não há necessidade de um líder quando os valores combinados tornam-se um guia da massa, justamente pela coesão de idéias em comum, compartilhadas através da rede. No fundo o povo está se sentindo ludibriado, e de certa forma refém de um esquema que não tem fim, um labirinto. Isso ataca o sentimento de justiça e liberdade, que já andava sendo pisoteado em diversos episódios.

    Não consigo imaginar se os anseios não forem atendidos o que aconteceria; hoje as massas direcionam seu clamor às forças armadas, na esperança de que certos critérios sejam atendidos. Esses últimos não estão muito claros também, não há uma lista com as condições exatas, ou medidas a serem tomadas.

    Uma lembrança curiosa, embora lugar comum, é que ao lembrar de livros como 1984, não se sabia se “o grande irmão” existia ou não, o que me leva a pensar se tudo isso, inclusive a reação das massas aos eventos recentes não é algo planejado cuidadosamente; falo de validação de hipóteses e testes de engenharia social. Não é bastante coincidência, tantos ataques à moral do povo, durante vários anos e sem cessar? Isso seria uma hipótese ainda mais nefasta, a de que até mesmo a oposição seja uma consequência planejada, para testar justamente esses questionamentos do seu texto. “Agirão sem um líder? Até onde irão? Quais os limites de ação?”.

    Grande abraço,
    Liber

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