O caráter cristão é comumente visto como vinculado ao sentimento de culpa. Não foram poucos os pensadores que criticaram esse elemento que entendiam ser parte indissociável da mentalidade cristã. A postura de muitos religiosos, ao dar ênfase, acima de tudo, à culpa como elemento essencial da religiosidade, ofereceu a filósofos, como Nietzsche, munição para que acusassem o cristianismo de colocar sobre os homens um peso pernicioso. No entanto, quero demonstrar aqui que, na verdade, essa consciência culpada e atormentada não é uma característica cristã, mas essencialmente moderna, e penetrou na consciência cristã apenas com o decorrer da modernidade.
O mundo medieval, fechado que era, tinha o indivíduo como um membro do corpo social, com uma função determinada, uma posição definida, sujeito a um ordenamento eterno e com com seu destino vinculado ao destino da sociedade em que vivia. Seu próprio conceito de salvação era bastante simples: para livrar-se do Inferno, bastava, por meio do batismo, fazer parte da cristandade. Os castigos eternos eram reservados aos hereges e impiedosos, ou seja, era uma exceção. Pode-se dizer que o cristão medieval estava, de alguma maneira, destinado ao céu (ainda que tivesse de passar antes pelo Purgatório), sem que precisasse fazer qualquer esforço especial. Bastava ser cristão, o que significava fazer parte de uma sociedade cristã.
Veio então a Modernidade e separou a sociedade do indivíduo. Este tornou-se um ser autônomo e responsável por suas próprias escolhas. Não havia mais posição definida, destino determinado, função determinada. A sociedade deixou de ser, para ele, aquela que lhe direcionava à verdade. Nos escritos de Francis Bacon e de René Descartes há uma evidente desconfiança em relação aos ensinamentos oriundos da sociedade. Ela deixa de ser confiável, sendo agora aquela que engana, desvirtua, atrapalha o homem em sua busca de conhecimento. Bacon se levanta contra os axiomas, que têm sua origem em princípios muito gerais e permanecem pela tradição (pela sociedade); Descartes é mais direto e desconfia abertamente das autoridades sociais (guias e mestres) que lhe ensinaram tudo o que ele sabia.
Diante de uma sociedade que já não possuía o monopólio da verdade e que já não estava apta a determinar a posição e o destino dos homens, o indivíduo teve de assumir a responsabilidade por forjar sua própria ventura. Agora, senhor de seu próprio destino, precisou assumir também as rotas que iria trilhar. Para isso, foi forçado a desenvolver seus próprios métodos para seguir adiante, em direção aos seus propósitos. Não é por acaso que nesse período se proliferaram os conselhos de comportamento, as dicas de etiqueta e de postura, os exercícios espirituais, o louvor à austeridade ─ tudo aquilo que as pessoas identificavam como necessário para prosperar, em todos os sentidos. Esse auto-gerenciamento refletiu-se também na religião. Nela, disseminaram-se as regras, os hábitos, as disciplinas. São desse período os exercícios de Inácio de Loyola, que enfatizavam o esforço (inclusive físico) como indispensável para o crescimento espiritual. Há também a rigidez comportamental dos puritanos que, mesmo enfatizando a salvação sem as obras, resgatam-na ao exigi-la como prova dela. O fato é que, na modernidade, o esforço, seja no contexto religioso como no mundano, passou a ser visto não apenas como necessário, mas meritório. A diligência, seja para alcançar a graça, seja para cumprir com seus propósitos terrenos, tornou-se uma virtude.
Esse indivíduo moderno, dependente do empenho, da dedicação e da postura, precisava ser um perpétuo vigilante e lutar ininterruptamente contra sua própria natureza. Não havia mais espaço para o relaxamento, como deixam claras as palavras de Santa Teresa D’Ávila: “Não vos deis por seguras, nem vos deiteis a dormir. Ficamos nós mesmas e bem sabeis que não há pior ladrão”. O fiel que, nos tempos antigos, era contemplado pela graça divina, pelo simples fato de ser membro do corpo da cristandade, agora não podia vacilar, precisando esforçar-se para agradar a Deus. Dessa forma, o sacrifício se tornou virtude e sua ausência, vício.
Esse espírito tão dependente do autodomínio passou então a sofrer quando este lhe faltava. Quem não desse o melhor de si passava a ser visto como preguiçoso, indolente e merecedor de todas as desgraças. Seja no contexto religioso ou mundano, só merece a boa sorte quem se dispõe a sacrificar boa parte de seus prazeres e descanso. No entanto, como não há um parâmetro exterior que determine o quanto dessa entrega é suficiente, o homem moderno sente que nunca está fazendo o suficiente para cumprir os seus propósitos. A sensação é de que, por mais que se esforce, sempre pode fazer mais e sempre é possível alcançar resultados melhores. Sendo assim, a culpa passa a consumi-lo e ser-lhe uma companhia constante.
O homem medieval até podia temer seriamente os castigos divinos, mas é o moderno que vive assombrado pela consciência. É ele que carrega nos ombros o peso de não conseguir cumprir seus objetivos por meio de seus esforços. Por isso, a culpa é sua companheira constante, constituindo-se um sentimento típico do seu tempo.
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