É bem mais provável que se criem rusgas e conflitos entre aqueles que são parecidos do que entre estranhos. Isso porque o parecido se diferencia pelo detalhe, o detalhe se torna seu ponto distintivo, este ponto distintivo se torna aquilo que o identifica e as pessoas tendem a se apegar com mais ardor aquilo que as identifica de maneira distintiva. Entre estranhos isso é mais difícil de acontecer, pois não havendo nada que os assemelhe, também não há nada específico que os distingua. Sendo completamente diferentes, não há nada específico para se apegar.
Por isso, vemos, por exemplo, católicos e protestantes, e dentro do próprio protestantismo, grupos de vertentes diversas, confrontando-se entre si com muito mais força do que quando se deparam com grupos que se situam completamente fora de seus círculos doutrinários. O que diferencia um católico de um protestante, por exemplo, são doutrinas marginais. Assim acontece, de maneira ainda mais evidente, entre calvinistas e arminianos. No entanto, o que faz de alguém especificamente calvinista são suas crenças distintivas, como a predestinação. Por isso, acaba ocorrendo um apego sentimental a essas doutrinas, que são, de fato, sua identidade.
Não por acaso as discussões são muito mais acaloradas entre católicos e protestantes e entre calvinistas e arminianos do que entre quaisquer desses e qualquer outro grupo externo. Testemunhei verdadeiras batalhas verbais por causa de temas como eleição, sacramentos e batismos, que se fossem empreendidas face a face não duvido que acabariam em violência.
O mais impressionante em tudo isso, porém, se encontra no fato de ver como no desenrolar desses conflitos se manifesta uma ignorância mútua. Normalmente, a doutrina alheia é criticada sem um conhecimento profundo, de fato, do que elas significam e como elas se desenvolveram dentro de cada vertente cristã. Mesmo tendo tantos pontos em comum, cada grupo parece fechar-se hermeticamente em seus próprios pressupostos, julgando os alheios de uma maneira superficial e relapsa.
O que eu quero ressaltar, porém, é como esse desprezo mútuo, que aqui quer dizer o ato de classificar a doutrina alheia com lugares-comuns e de antemão, é uma prova de como esses mesmos grupos estão incapacitados de enfrentar inimigos que se encontram fora do meio cristão. Se entre eles, que possuem em comum a gênese de suas doutrinas e que divergem em meras questões marginais, já ocorre uma ignorância mútua com relação ao que cada vertente realmente ensina, como poderão entender o que pensam seus verdadeiros inimigos, que não compartilham em nada de suas cosmovisões?
Para quem se dispõe a entrar em uma batalha, é indispensável entender como pensa o inimigo. Sem isso, não há como defender-se, menos ainda como atacá-lo. No entanto, para conhecê-lo, é preciso uma disposição para, ainda que temporariamente, pensar como ele, percorrendo os mesmos caminhos lógicos que ele fez para chegar às suas conclusões. Apenas se colocando na cabeça do outro, esforçando-se para pensar como o outro, é possível entendê-lo.
No entanto, se católicos e protestantes já encontram uma dificuldade terrível de sair de seus próprios círculos doutrinários, não conseguindo sequer fazer um pequeno esforço de expansão para entender a doutrina cristã alheia, que é tão parecida, como terão a mínima capacidade de compreender as razões de grupos que não possuem quase nenhum ponto de intersecção com os deles?
Esse fechamento dentro das concepções internas de sua própria doutrina acaba sendo algo bastante limitador. Ainda que o pensamento interno esteja correto, ele não é apto para explicar as formas de pensar alheias. Uma doutrina não é a explicação de tudo, mas o esclarecimento de uma realidade específica. E ainda que os efeitos da doutrina sejam universais, isso não significa que seus métodos de pensamento expliquem todas as coisas. Explicam, sim, aquilo que é necessário para a compreensão da verdade que ela pretende revelar, não para o entendimento do pensamento praticado por quem ignora-a completamente, por exemplo.
Essa atitude hermetista, na verdade, representa uma castração do pensamento. Não que o que se sabe, dentro dos círculos religiosos, seja errado. Pelo contrário, é muito mais provável que ali se encontrem verdades realmente amplas. O problema ocorre, porém, no nível epistemológico, pois, ainda que o que se saiba seja verdade, isso não significa que seu portador entenda as razões dessa verdade. E quando não há uma compreensão das razões, pode até se manifestar a vida piedosa e justa, não porém a inteligente. E sem essa inteligência, se torna impossível participar de um debate com pessoas que não façam parte do mesmo círculo.
Assim, ao encasular-se dentro dos pressupostos da doutrina, mostrando desinteresse quanto ao desenvolvimento das formas de pensamento externas, o religioso impede a si mesmo de atuar como o guardião da fé que pretende ser. Isso porque estará inabilitado para o combate. Como seu conhecimento dos instrumentos inimigos são parcos, seu poder de atuação será pífio.
Quando vejo, portanto, a demonstração de ignorância que diversos cristãos manifestam quanto às teologias que desejam combater, logo estas que se situam em seu maior ponto de interesse, não posso evitar pensar o quanto eles, na ânsia de se apresentarem como paladinos de suas convicções religiosas, apenas escancaram o quanto estão despreparados para protegê-las. E seus verdadeiros inimigos jubilam-se diante disso.
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