Quem está certo: os que pensam que a Terra é plana ou aqueles que têm a convicção de que ela é um globo? Esta pergunta, até bem pouco tempo atrás, seria considerada um desatino- e talvez ela o seja mesmo. Afinal, desde sempre, aprendemos que, se havia algo certo e indiscutível, é o fato de que nosso planeta não passa de uma bola, entre tantas outras, boiando num universo imenso.
No entanto, surge agora gente que ousa contestar essa verdade absoluta, colocando em discussão um tema que parecia pertencer àqueles que estão fora do debate público, por serem considerados certos e inquestionáveis.
E sem adentrar no mérito do problema, o que me chama a atenção é o fato de que o levantamento desse assunto pelos terraplanistas tem evidenciado o quanto os defensores da verdade consagrada têm dificuldade de provar, mesmo em tese, seus próprios argumentos. Não que os terraplanistas tenham teses melhores e mais bem demonstradas – longe disso! – mas o outro lado, que defende a razão estabelecida, sofre demais para mostrar que está certo.
Isso me faz refletir o quanto tratamos meras teses científicas como fatos incontroversos, quando sequer temos os argumentos que os expliquem devidamente. Na verdade, a maior parte delas – senão todas – são defendidas por nós não porque compreendemos completamente suas razões, mas por as termos aprendido das devidas autoridades.
Não que isso seja errado, afinal, não fosse a confiança nas autoridades científicas, pouquíssimas coisas poderíamos dar por conhecidas. O problema apenas reside no fato de que as pessoas não percebem que boa parte daquilo que dizem saber indubitavelmente só o sabem porque estão acreditando naqueles em quem depositam sua confiança.
Ora, se o que defendemos absolutamente o fazemos, não como resultado da experiência direta ou pelo devido conhecimento das razões que comprovem a tese, mas por uma confiança cega nas autoridades, então já não se trata de uma convicção científica, mas de um artigo de fé.
Não por acaso, nos debates pretensamente científicos que se proliferam pelos fóruns de discussões, o que prevalece não é o verdadeiro espírito de ciência, mas a postura intransigente típica de um fiel religioso. Como nessa questão sobre o formato da Terra e outras como, por exemplo, a própria hipótese evolucionista, basta alguém levantar qualquer tipo de objeção às teses consagradas para despertar o espírito fervoroso desses novos crentes, que se debatem por causa do inconformismo que sentem pelo ataque a seus totens, sem oferecer os devidos argumentos que justifiquem tamanha perplexidade.
O que o terraplanismo tem mostrado – e esta eu acredito ser a contribuição primeira oferecida, ainda que involuntariamente, por ele – é que, nas questões científicas, há muitas convicções sem fundamento e muitas certezas sem o devido conhecimento das razões. E tem deixado evidente que mesmo as idéias mais consagradas – como é o caso do formato da Terra – não se mostram tão óbvias quando precisam ser defendidas. Se os argumentos terraplanistas não são fáceis de engolir, isso não significa que os advogados do globo se desembaraçam com facilidade quando instados a expor suas teses.
A lição para todos nós é: sejamos humildes ao discutir assuntos científicos. Isso significa nada menos do que incorporar o verdadeiro espírito da ciência. Afinal, se tem algo que caracteriza esse espírito é a desconfiança em relação às verdades absolutas. O verdadeiro cientista resiste às convicções e pratica o exercício de não tirar conclusões precipitadas, estando sempre aberto para a avaliação de novas hipóteses.
O que não combina com o espírito científico é o fanatismo de quem tem ataques coléricos ao ver suas certezas inabaláveis colocadas à prova.
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